sexta-feira, 30 de março de 2012

Salário, desenvolvimento e os saudosistas do atraso - 1


Um artigo dedicado às novas gerações, para que reflitam sobre avanços básicos de justiça social -implantados pelo nacional-desenvolvimentismo - e fiquem alertas diante da tentativa de anulação do nosso próprio passado pelos que querem que voltemos a trilhar o descaminho das políticas recessivas e de derrubada do crescimento, em nome de um suposto “combate à inflação”
CARLOS LOPES
Muitos dos que viveram as turbulentas décadas de 60, 70 e 80 - e nelas se formaram, como é o nosso caso - frequentemente se surpreendem, ou ficam indignados, quando conquistas básicas daqueles anos (e estamos nos referindo, sobretudo, aos avanços do conhecimento, isto é, de consciência) são ignoradas, como se nunca tivessem existido, por certos sujeitos, inclusive autoridades e homens públicos. Para esses últimos, é, mais ou menos, como se aqueles anos não tivessem sido vividos pelo povo brasileiro e pela Humanidade - ou, pior ainda, como se aqueles anos tivessem que ser ignorados, exceto em seus aspectos mais superficiais. E, realmente, quando o objetivo é retroagir no tempo, é necessário passar por cima do conhecimento já alcançado.
Compreende-se, perante isso, o sentimento de perplexidade ou de indignação: nenhum ser humano, exceto um degenerado, pode se conformar com a anulação do próprio passado, pois não existimos sem ele – significaria a anulação de nós mesmos.
No entanto, para além dos problemas históricos mais evidentes - é claro que essa tentativa de anulação é um resíduo da contrarrevolução ostensiva, a ditadura do que se chamou “neoliberalismo”, que sucedeu aos problemas no Leste europeu da década de 90 -, o mais importante continua, sempre, sendo que essa negação do que já foi conquistado é uma tentativa de impedir que tanto o povo brasileiro, quanto a Humanidade, tenham um futuro.
Com toda razão, um dos luminares da civilização, Sigmund Freud,  escreveu, em 1927, que “quanto menos um homem conhece sobre o passado e o presente, mais inseguro será o seu julgamento sobre o futuro”.
Por isso, este artigo é dedicado aos nossos filhos, que, graças à luta do povo brasileiro, não tiveram que viver o passado difícil que nós vivemos. Certamente, a eles corresponde a superação de outras dificuldades. Esta é apenas uma pequena e possível ajuda para que vivam o que vem pela frente.
1
Comecemos por um exemplo.
Quem será, leitor mais jovem, o autor das seguintes palavras?
A política econômica e financeira do governo atual tem sido a política da valorização do dinheiro e da desvalorização do trabalho… a valorização do dinheiro na mão dos que têm dinheiro (…). Não sendo capazes de criar uma indústria e empregar esse capital em qualquer atividade produtiva, eles se reservam, (…) na sua função de usurários, emprestarem o dinheiro a 12, 14, 18 e 20%. É isto o que eu denomino de valorização do dinheiro. (…) Portanto, a política que se está seguindo, da valorização do dinheiro, é a da desvalorização do trabalho, é precisamente a política da perseguição do trabalhador e da produção; ao passo que a política que nós devemos fazer é a do barateamento do dinheiro (…). E para que todos tenham oportunidade de trabalhar é preciso que não lhes falte o necessário crédito, sempre que tenham uma boa ideia a executar. É, exatamente, o inverso do que se está fazendo atualmente, o que é preciso fazer para o futuro”.
Se o leitor não adivinhou, para facilitar, vamos fornecer mais outro trecho do mesmo autor:
Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salários, alegando-se que isso afetará o custo de produção. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro (…). O custo de produção não baixa. Antes pelo contrário: com a redução de meios para desenvolver-se, esse custo aumenta cada vez mais. (…) O custo da produção (…) nada mais é, dentro do sistema capitalista em que vivemos, do que a resultante da soma de duas parcelas: o custo do dinheiro e o custo do trabalho. O que se visa fazer é aumentar o custo do dinheiro e diminuir o custo do trabalho, isto é, reduzir (…) as possibilidades  dos trabalhadores pleitearem reajustamento de salários. Não me parece que esta seja a melhor forma de se baratear a produção, nem, tampouco, a melhor maneira de se estimular a produção”.
Sim, leitor, quem será esse autor? Por último, mais um trecho, pois nós estamos aqui para ajudar o leitor, mais ainda os mais jovens:
... um dos erros maiores é o do cerceamento do crédito… a criação do monopólio do dinheiro, que se está efetuando no Brasil, representa uma das mais impressionantes ofensivas do poder financeiro contra a produção e contra os valores do trabalho e de iniciativa… A alta finança (…) está governando o país. As forças de produção estão sendo subjugadas e aniquiladas”.
2
O autor de todos os trechos acima é o senador Getúlio Vargas, em 1947 – e o governo ao qual ele se refere é o governo Dutra.
Na época, Getúlio combatia a “ditadura econômico-financeira que está funcionando como um garrote contra todas as forças da produção… ditadura mais rígida, mais severa, mais inabalável e irredutível do que a que se derrubou” (discurso no Senado, 03/07/1947 – todas as citações de Getúlio estão em: Pedro Paulo Zahluth Bastos, “Qual era o projeto econômico varguista?”, TD nº 161, IE/UNICAMP, Campinas, maio 2009).
No mesmo discurso, o então senador da República, ex-presidente e futuro presidente, abordou a relação entre o desenvolvimento e o aumento dos salários reais:
... a industrialização é o anseio de todos os povos, porque a indústria representa a fase mais elevada da civilização… Como se combater o pauperismo sem a valorização do trabalho? Como se valorizar esse trabalho sem eficiência? Como se alcançar eficiência sem a multiplicação do valor do homem pela energia da máquina?”.
Em discurso anterior, ele analisara a relação entre crescimento e inflação – mostrando o desastre inevitável a que conduziam as políticas recessivas, de derrubada do crescimento, supostamente, para “combater a inflação”:
Parece lógico que a solução para o problema não é restringir créditos e, sim, aumentar a nossa produção e riqueza, aumentando, portanto, os bens, as mercadorias e os serviços. (…) Mas não é esta a opinião do ilustre Presidente do Banco do Brasil, orientador geral da economia e das finanças nacionais. ‘A produção’, declara sua senhoria em seu Relatório – ‘não se pode desenvolver de modo ilimitado’. E continua dizendo mais ou menos o seguinte: que, existindo excesso de meios de pagamento e não existindo possibilidade de aumento de produção, é indispensável reduzir os meios de pagamento. Doutrinariamente, esse ponto de vista estaria certo, se não houvesse mais possibilidade de aumento de produção, isto é, se o Brasil tivesse alcançado a saturação econômica. O grande mal de ler muitos livros estrangeiros, sem traduzir os problemas, limitando-se à tradução das palavras, reside precisamente nisso. Irving Fisher escreveu dentro do problema norte-americano e nós nos encontramos num país onde podemos verificar um subconsumo e uma subprodução. Muito longe de alcançarmos o ilimitado, precisamos produzir, e produzir muito, para a grandeza de nosso País e bem-estar de nosso povo… Se há falta, bens, mercadorias e serviços ainda se podem desenvolver, estando, assim, muito longe do limite de saturação” (discurso no Senado, 30/05/1947).
Por uma questão de justiça, registremos que Irving Fisher, hoje um santo da capela neoliberal, também estava errado em relação aos EUA – não apenas na sua desastrosa atitude na depressão de 1929, o que jogou num interceptor oceânico a sua reputação, mas na posterior oposição à política do presidente Franklin Delano Roosevelt.
Pela mesma razão, registremos que o presidente do Banco do Brasil a que se refere Getúlio, o industrial e médico Guilherme da Silveira, dono da Fábrica de Tecidos Bangú, posteriormente, como ministro da Fazenda, mudou sua opinião e foi por outro caminho na política econômica. Mas, então, 1949, já era tarde para o governo Dutra.
Quanto a Getúlio, ele sabia do que falava - no balanço do seu primeiro governo (1930-1945), ressaltou:
Desde 1930 até 1944, os meios de pagamento passaram do índice 100 para o índice 720 (…). A emissão de papel-moeda não tem uma relação tão estreita com os preços, conforme se afirma. (…) Os que falam em baixa de produção em relação ao aumento de meios de pagamento, é preciso que reflitam sobre o índice de aumento de volume não só dos gêneros alimentícios como das matérias primas, que, de 100 em 1929, passou para 354 em 1944, e o índice de produção industrial básica, que, de 100 em 1929, passou para 1.217 em 1944. Relativamente à produção industrial brasileira, não existe uma estatística completa (…). Temos, porém, possibilidades de chegar a uma estimativa bem superior ao índice de 700, considerando-se produção industrial a atividade de construção civil. Não há um desequilíbrio tão violento entre os meios de pagamento e os bens de consumo. E este ponto é, precisamente, o ‘calcanhar de Aquiles’ da orientação monetária do governo. E é precisamente devido a esse erro que a produção nacional se reduzirá na proporção da redução dos meios de pagamento, porque inegavelmente tivemos (no governo anterior) um forte aumento não só no meio circulante como na moeda escritural. Mas isto representava apenas a média geral das necessidades de desenvolvimento de um país. Numa situação de economia já saturada, esse aumento de meios de pagamento pode determinar grandes crises. Numa nação como o Brasil, de economia em evolução, o aumento dos meios de pagamento, acompanhado pelo aumento de bens de consumo – que, como se está verificando, se efetuou – e ainda por uma elevação proporcional da tributação, que retira os excessos da circulação pelo meio fiscal, não representa o menor perigo. Perigo, sim, é a redução dos meios de pagamento. E tanto mais grave quando vai alcançar toda a estrutura do Estado e não somente a vida econômica do país” (discurso no Senado, 3/07/1947, grifos nossos).
Isso é, essencialmente, quase tudo o que se pode falar sobre combate à inflação, desde um ponto de vista racional. As décadas posteriores somente fariam confirmar – infelizmente, menos pelos acertos do que pelos equívocos, ao se ignorar a sua advertência - o juízo de Getúlio.
3
Isso foi há 65 anos.
No entanto, há mais de um ano, a atual equipe do Ministério da Fazenda e a atual diretoria do Banco Central vêm pregando o aumento de juros (a “valorização do dinheiro”) e a derrubada do crescimento como remédio contra a inflação – e sem que haja nenhum surto inflacionário: os aumentos de preços em 2011, além de relativamente pequenos, não tinham, fundamentalmente, origem interna. Num país sem defesas, destruídas nos dois mandatos tucanos que antecederam o governo Lula, eram uma consequência da especulação com commodities em Chicago e Nova Iorque.
Ao lado disso, ou como corolário, o BC desencadeou uma campanha contra os aumentos reais de salário, isto é, contra a “valorização do trabalho”. Não pode haver melhor definição da política econômica implementada a partir de janeiro de 2011 do que a fornecida por Getúlio, há 65 anos: “valorização do dinheiro e desvalorização do trabalho” - em suma, favorecimento do “monopólio do dinheiro”.
4
Assim, segundo disse o BC há apenas três semanas, é preciso conter os aumentos reais de salário porque “aumentos de salários incompatíveis com o crescimento da produtividade” causam inflação (cf. BC, Ata da 165ª reunião do Copom, item 28, 07/03/2012).
O que são “aumentos de salários incompatíveis com o crescimento da produtividade”?
Peculiarmente, o BC não diz que os salários não podem crescer mais do que a produtividade – o que já seria, como veremos a seguir, uma aberração.
A tese (?) atual é outra: aumentos salariais podem impedir (“ser incompatíveis com”) o crescimento da produtividade. Nem precisam, pelo jeito, “superar” o crescimento da produtividade para causar inflação – pelo contrário, os aumentos salariais têm que ser contidos porque, se deixados sem contenção, eles é que impediriam “o crescimento da produtividade”.
Como seria possível tal fenômeno, é algo que não cabe a nós explicar. Na Grécia, onde os gênios do FMI e do BCE levantaram tal teoria, rapidamente viu-se que era uma vigarice para reduzir os salários (não somente os salários reais, mas, inclusive, os nominais), escamotear o assalto do país pela invasão dos monopólios financeiros externos e pelo câmbio implícito no euro (pois as economias nacionais continuam existindo, mesmo quando uma nação mais fraca adota a moeda de outra mais forte, ainda que sob a forma de “moeda comum” – o câmbio, que é um preço oriundo da relação entre economias nacionais, portanto, também continua existindo).
5
A incompatibilidade de aumentos salariais com o aumento da produtividade parece estar na mesma categoria da possessão diabólica ou das aparições de vampiros, lobisomens e mulas sem cabeça – porém, não é tão inocente quanto essas superstições.
Ao inverso, essa campanha cretina pelo arrocho teve um efeito direto sobre os aumentos salariais em 2011: o “patamar médio dos aumentos reais”, considerando como índice de inflação o INPC-IBGE, ficou em 1,38%, contra 1,68% em 2010 (cf. Dieese, “Balanço das negociações dos reajustes salariais em 2011”, Estudos e Pesquisas nº 59, março/2012).
Parece uma pequena diferença, mas esse é um daqueles casos em que a média mais esconde do que revela, pois significa que:
I)         Os acordos salariais com aumentos reais superiores a 5%, caíram de 4,1% dos acordos (2010) para 1,6% do total de acordos em 2011.
II)      Os acordos com aumentos reais entre 4,01% e 5%, caíram de 3,4% (2010) para 1,4% do total dos acordos salariais em 2011.
III)    Os acordos que conseguiram aumentos reais de 3% a 4%, caíram de 8,8% (2010) para 6,4% dos acordos salariais em 2011.
IV)     E até os que conquistaram aumentos reais de 2% a 3%, caíram de 16,2% (2010) dos acordos para 15,1% do total em 2011.
V)       Assim, 69,7% dos acordos salariais obtiveram aumentos reais que vão de  zero a apenas 2% acima do INPC-IBGE. Em 2010, essa faixa mais baixa dos acordos que não tiveram perdas salariais era 62,9% dos acordos.
VI)     Do mesmo modo, em 2010 a parcela de acordos que obtiveram aumentos reais acima de 2% foi de 32,5% do total de acordos. Em 2011, essa parcela caiu para 24,5% do total.     
Sintomaticamente:
“Considerando o ICV-DIEESE como deflator, o percentual de negociações que registraram aumento real em 2011 cai para 78% – o menor dos quatro anos considerados[2008: 96,6%; 2009: 94%; 2010: 80,3%] – e o percentual das negociações com registro de perdas reais sobe para quase 22% do total – o mais elevado do período [2008: 3,4%; 2009: 6%; 2010: 19,7%]” (cf. Dieese, loc. cit.).
O ICV-Dieese é um índice de custo de vida da cidade de São Paulo, ao invés do INPC-IBGE, que cobre as nove maiores cidades e suas zonas metropolitanas, além de Brasília e Goiânia. Mas é significativo porque São Paulo é a cidade  com o maior parque industrial, com a maior estrutura de serviços e com o maior número de acordos salariais do país.
Em suma, em 2011, com a sinalização aos empresários da campanha pelo arrocho salarial do BC, houve uma regressão quanto aos aumentos reais, comparados aos do ano anterior.
No entanto, em 2010 (referência para os aumentos e reajustes de 2011) o PIB cresceu 7,5%, a produção industrial aumentou 10,5% e a produtividade da indústria, se calculada pela fórmula do IBGE (produção física/horas pagas), aumentou 6,1%.
É verdade, como observa o Dieese, que, além disso, “poucas negociações lograram conquistar ganhos reais acima da variação do PIB e PIB per capita – aqui tomados ilustrativamente como indicadores dos ganhos de produtividade da economia – nos últimos quatro anos” (idem).
Mas nunca, nos últimos anos, os aumentos salariais estiveram tão longe do crescimento, seja da produção, quanto da produtividade – não importa qual o critério para cálculo ou avaliação desta - do ano anterior, quanto em 2011.
6
Entretanto, toda essa conversa sobre a suposta necessidade de conter os aumentos salariais por causa da “inflação” e da “produtividade” foi desmoralizada há mais de 50 anos.  
Quando o então ministro de Planejamento do primeiro governo da ditadura, Roberto Campos, em junho de 1964, propalou que os aumentos salariais eram causa da inflação (ao lado do déficit público e do “excesso” de crédito público para as empresas nacionais), provocou um escândalo tão grande que passou os anos seguintes se defendendo.
Segundo Roberto Campos, os salários não podiam  crescer “mais que a produção e a produtividade” – como teria acontecido, ainda segundo ele, nos governos Getúlio, Juscelino e Jango.
Quanto à produção, era uma evidente mentira (cf. IBGE, “Estatísticas do Século XX”, 2007, tabela I.1.1 - “Brasil: População, PIB, PIB ‘per capita' e deflator implícito do PIB, 1901-2000”).
Quanto à produtividade, ainda que existam inúmeras fórmulas e concepções sobre o assunto, também. Mais abaixo abordaremos a questão com mais detalhe – por agora, basta registrar que um dos indicadores mais evidentes do crescimento da produtividade, o aumento do investimento, exposto pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF ou FBKF),  cresceu bem mais que os salários entre 1950 e 1963 (cf. IBGE, idem, “II - Formação Bruta de Capital Fixo e estoque de capital”).
Porém, o escândalo maior não foi devido à essas duas mentiras, mas a uma terceira: a própria suposta teoria, mais afeita ao ramo das perversões do que à economia política. É verdade que não era inédita: uma conhecida múmia da época, Eugenio Gudin, responsável, no governo Café Filho (1954-1955), por uma das mais desastrosas gestões do Ministério da Fazenda, já havia aparecido com essa pérola desde os anos 30. Mas, ambos, Gudin e  Roberto Campos, copiaram-na de autores – todos porta-vozes de magnatas monopolistas – residentes em outras plagas.
Alguém (nos escapa, na memória, o autor) já disse que Roberto Campos “jamais defendeu uma ideia que já não tivesse sido formulada, antes, em inglês”. Estaríamos prontos a concordar, se não fosse uma injustiça para com as ideias. O notório Bob Fields, um incompetente que fracassou em todos os negócios em que se meteu - ou foi metido –, jamais defendeu ideias. Ele defendia os interesses dos monopólios e carteis dos EUA. Fora isso, desconhece-se, da parte dele, algum indício de pensamento, pelo menos no sentido que os humanos dão a esta palavra.

Nenhum comentário: