quarta-feira, 4 de abril de 2012

Salário, desenvolvimento e os saudosistas do atraso - 2

As defesas de Roberto Campos do arrocho salarial adiantaram muito pouco, ou, para ser preciso, absolutamente nada: 13 anos depois, em 1977, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luís Inácio Lula da Silva, conquistaria projeção nacional quando afirmou que era uma fraude atirar sobre os aumentos salariais reais a responsabilidade pela inflação, ao exigir a reposição nos salários do índice de inflação de 1973, que fora falsificado
CARLOS LOPES
As defesas de Roberto Campos do arrocho salarial adiantaram muito pouco, ou, para ser preciso, absolutamente nada: 13 anos depois, em 1977, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luís Inácio da Silva, conquistaria projeção nacional – o que quer dizer, apoio quase total da população, inclusive dos economistas, exceto os que serviam à ditadura ou ao capital estrangeiro – quando afirmou que era uma fraude atirar sobre os aumentos salariais reais a responsabilidade pela inflação, ao exigir a reposição nos salários do índice de inflação de 1973, que fora falsificado.
Depois de várias manipulações nos índices, o escândalo estourara quando o Banco Mundial (BIRD) publicara, nesse ano de 1977, um relatório com uma frase: “A figure of 22.5% for the rate of inflation in 1973 has been used instead of the official figure of 12.6% (‘Foi usado um número de 22,5% para a taxa de inflação de 1973, ao invés do número oficial de 12,6%’)”.
Em suma, concluiu-se, o governo informara ao BIRD um índice de inflação que escondia dos brasileiros para diminuir os reajustes de salários.
No ano seguinte, 1978, o então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, admitiu a fraude, em relatório do governo, “mostrando que o critério de manipulação tinha sido: usar os preços tabelados pelo governo, ao invés dos preços de mercado (isto é, realmente pagos pelas donas de casa). Disse também que, embora o IPC oficial tivesse sido de 13,7% em 1973, seu valor correto era 26,6%; o item ‘alimentação’, que era de 16,4%, devia ser elevado para 41,4%” (v. Antonio Carlos M. Mattos, “A Inflação Brasileira”, cap. 8, “História dos índices de inflação”, 1ª ed., Vozes, 1987; 2ª ed. virtual atualizada: www.amattos.eng.br/Public/Livro_Inflacao/~homebook.htm).
O que isso provava? Simplesmente, que o objetivo da política econômica era não repor nos salários a inflação, ou seja, reduzir o salário real – e não que os aumentos salariais causassem inflação, até porque ela existia com todo o achatamento salarial: o IPC, calculado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), depois da fraude de 1973, subiu para 33,85% (1974); 31,21% (1975); 44,83% (1976); e 43,06% (1977), sem que houvesse nenhuma reposição do que foi perdido nos salários - o que desembocou nas greves operárias que levantaram o país a partir de 12 de maio de 1978.
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Em 1964, Bob Fields não conseguiu convencer nem o empresariado: para executar a política de arrocho salarial, Campos & Bulhões (o ministro da Fazenda) tiveram que, em setembro de 1965, proibir os empresários, por três anos, de concederem reajustes aos trabalhadores, exceto por uma fórmula de confisco salarial, fabricada pelo mesmo Simonsen que depois seria ministro da Fazenda – sob pena de multa para os que desobedecessem (lei nº 4.725/65).
Além disso, os empresários foram proibidos de conceder qualquer reajuste em intervalo menor que 12 meses.
Para submeter os trabalhadores a esse esbulho, a ditadura aumentou a repressão sobre o movimento sindical, pois, dizia Roberto Campos, papagueando o neofascista (quer dizer, neoliberal) von Hayek, “o poder sindical é essencialmente o poder de privar alguém de trabalhar com os salários que estaria disposto a aceitar”. Como todo mundo sabe, é o trabalhador, individualmente, quem escolhe livremente o seu salário...
Para garantir essa liberdade de ter o couro arrancado, 814 sindicatos sofreram intervenção somente em 1964-1965 (cf. CGTB, “Liberdade e democracia só com unicidade sindical”, cit. in Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, Alfa-Omega, 2004 – o autor registra, também, que 70% das diretorias de confederações sindicais foram cassadas).
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Porém, qual era a defesa que Bob Fields fazia do arrocho salarial?
Nas suas palavras:
Muitos empresários se sentiriam felizes se tivessem um mercado mais ativo para suas mercadorias. (...) O remédio para isso seria uma elevação geral de salários, a fim de dar poder aquisitivo aos assalariados, aumentando-lhes a procura de bens de consumo. (...) A única solução durável e realista (...) é um incremento de produtividade da mão de obra ou do equipamento (…). O enfoque populista (…) propugna maciços reajustamentos salariais, que, por excederem o crescimento possível da produção e produtividade, alimentam a espiral de preços. (…) O desenvolvimentismo é sem dúvida parte de verbiagem populista” (R. Campos, “Ensaios contra a maré”, Rio, 1969, Apec, págs. 50 e 200, grifo nosso - cit. in M. H. P.  dos Santos, “Roberto de Oliveira Campos, homem de ação do governo Castelo Branco”, Fundação Seade, São Paulo em Perspectiva, vol. 14, nº 2, 2000, p. 116).
Tudo isso era, já na época, de um ridículo atroz. Era evidente que os reajustes salariais apenas repunham a inflação passada – no melhor dos casos com algum aumento real que não fazia mais que minimizar a queda no poder aquisitivo até a próxima convenção ou dissídio.
Mas, além dessa questão prática, havia – e há - um quiproquó na ideia de jerico de que os aumentos de salários não podem ultrapassar uma suposta “produtividade” (que nada tem a ver com a produtividade real ou seu conceito teórico – essa “produtividade” tem apenas a função de servir de pretexto para arrochar os salários).
O quiproquó (quid pro quo) consiste no seguinte:
O aumento da produtividade, do ponto de vista do empresário, não antecede o aumento da produção e a chamada “propensão ao consumo”. Pelo contrário, não há como aumentar a produtividade sem aumentar o consumo e a produção.
Os neoliberais, com sua grosseira estupidez, veem o aumento de produtividade como uma simples (e, claro, individual e arbitrária) decisão do empresário - que seria, como disse Marx sobre a concepção da economia política vulgar, uma espécie de Robinson Crusoe, isolado em sua ilha.
Mas essa vulgaridade, certamente, não existe – é somente uma fantasia ideológica de quem não se preocupa com a produção e muito menos com o crescimento.
Evidentemente, não é o consumo que determina a produção; esta é que determina o consumo - mas essa verdade da economia política não apaga o fato, que tem de ser levado em conta na política econômica, de que nenhum empresário aumentará seu investimento (a compra de máquinas e equipamentos, meios de transporte, ou terrenos e edificações para aumentar a capacidade de produção da sua empresa) se considerar que o aumento da produção e da produtividade, correspondentes ao aumento do investimento, não será absorvido pelo mercado, ou seja, que o aumento de sua produção não encontrará compradores.
Hoje em dia, depois de anos de esquecimento e difamação, com a atual crise, há um “revival” de citações (mais que das ideias, apresentadas, em geral, de forma distorcida por monetaristas e neoliberais) do economista inglês John Maynard Keynes.
Os economistas da escola de Keynes estão certos quando formulam que “a sustentabilidade do crescimento da produtividade depende, essencialmente, de fatores atuando pelo lado da demanda agregada” (isto é, do consumo, ou “propensão a consumir”, incluído aqui o consumo industrial – cf. Carmem Aparecida Feijo e Paulo Gonzaga M. de Carvalho, “Uma interpretação sobre a evolução da produtividade industrial no Brasil nos anos noventa e as 'leis' de Kaldor”, Nova Economia, BH, vol. 12, nº 2, jul./dez. 2002, p. 57).
Da mesma forma, estão certos ao formular, ao modo de uma função matemática, que “a variável independente é a taxa de crescimento da produção industrial e a dependente é a taxa de crescimento da produtividade industrial” (idem, pág. 62). De forma geral: a taxa de crescimento da produção industrial determina a taxa de crescimento da produtividade industrial; esta última é determinada por aquela.
Como, então, aumentar a produtividade com um arrocho nos salários que significa umaredução da “demanda agregada” (isto é, no consumo e na “propensão a consumir”) e, consequentemente, ao frustrar as expectativas dos empresários, uma redução na produção e no investimento?
Até agora não apareceu quem fosse capaz de fazer essa mágica. O aumento do consumo, para o empresário, é o melhor estímulo ao aumento do investimento, portanto, ao aumento da produtividade.
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Mas, diria o sr. Mantega, esquecendo-se do que ele mesmo escreveu no passado, agora convertido em neo-neoliberal: se o consumo aumentar mais que o investimento, haverá inflação, pois as pessoas procurarão artigos de consumo sem que as empresas possam produzi-los em quantidade suficiente para suprir essa demanda, logo, os preços se elevarão – e, logo, o remédio é derrubar a produção e o consumo antes que aconteça essa desgraça.
Isso seria verdade se o aumento do consumo, além de ocupar toda a capacidade ociosa da indústria, excedesse o aumento da capacidade instalada, determinado pelo investimento.
No entanto, além de ser difícil encontrar casos desse tipo, isso nada tem a ver com a economia brasileira atual.
A charlatanice está, portanto, em sacar da algibeira uma situação hipotética (aliás, pré-fabricada) para se contrapor a uma situação real. Uma forma de argumentar muito fácil - mas falsa de fio a pavio. Por exemplo: se os empresários gastarem todos os seus lucros com aumentos de salários, certamente que irão falir. O difícil é achar um empresário que faça isso – e, ainda por cima, não seja internado pela família num hospício.
Vejamos a primeira tabela desta página:
ANO
INVESTIMENTO
(FBCF – var. %)
CONSUMO
(var. %)
CAPACIDADE OCIOSA MÉDIA (%)
CRESCIMENTO
(PIB – var. %)
2003
-4,6
-0,8
21,2
1,2
2004
9,1
3,8
18,5
5,7
2005
3,6
4,5
19,2
3,2
2006
9,8
5,2
19,3
4,0
2007
13,9
6,1
17,5
6,1
2008
13,6
5,7
17,4
5,2
2009
-6,7
4,4
20,1
-0,3
2010
21,3
6,9
17,7
7,5
2011
4,7
4,1
17,8
2,7
Fonte: IBGE e CNI

Em 2003, ano em que o Brasil estava se recuperando da crise em que o governo Fernando Henrique lançara o país, o investimento (expresso pela FBCF – Formação Bruta de Capital Fixo, definida como a variação do estoque de capital fixo pelo gasto das empresas com máquinas,  equipamentos, meios de transporte, terrenos e edificações) caiu mais que o consumo. Será difícil aparecer alguém (embora, sempre existem os malucos) argumentando que, para que a economia fosse “equilibrada”, o consumo deveria cair mais que o investimento, pois é evidente que isso faria o investimento cair ainda mais.
Nos outros anos, o aumento do consumo somente superou o aumento do investimento em 2005 e 2009 – exatamente os dois anos, fora 2003, em que o crescimento do país foi mais baixo durante o governo Lula.
Em 2011, houve, digamos assim, um empate técnico – mas devido a uma redução abissal do aumento do investimento, mais que do aumento do consumo.
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Por aqui se vê a consistência (e as consequências) da política dos srs. Mantega & Tombini, aquela que pretendia (e ainda pretende) aumentar os investimentos privados através de cortes nos gastos de custeios e investimentos públicos.
Com o pretexto de que o consumo estava aumentando mais que o investimento, o crescimento do investimento foi derrubado de +21,3% (2010) para +4,7% (2011).
Resultado: a inflação de 2011 (6,5%), ano em que o país cresceu apenas 2,7%, foi maior que a de 2010 (5,9%), quando o Brasil cresceu 7,5%.
Sobre o pretexto para a derrubada do crescimento, na ata da 156ª reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), encerrada no dia 19/01/2011 (a primeira desde a posse da presidente Dilma), constava, no item 24 a seguinte frase:
O Comitê avalia como relevantes os riscos derivados da persistência do descompasso entre as taxas de crescimento da oferta e da demanda” (grifo nosso).
Essa frase, em seguida, foi repetida nada menos do que em sete atas das reuniões do Copom:
1)      na ata da 157ª reunião (02/03/2011) – item 24;
2)      na ata da 158ª reunião (20/04/2011) – item 25;
3)      na ata da 159ª reunião (08/06/2011) – item 25;
4)      na ata da 160ª reunião (20/07/2011) – item 24;
5)      na ata da 161ª reunião (31/08/2011) – item 25;
6)      e,  sob forma ligeiramente modificada, nas atas da 162ª reunião (19/10/2011) – item 28 - e da 163ª reunião (30/11/2011) – item 29. Nessas duas últimas, elogia-se o papel do “superávit primário” (isto é, o desvio de verbas públicas para os juros) no “arrefecimento” do “descompasso”.
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Mas, voltemos à primeira tabela.
O que se pode concluir é que, em todos os anos em que houve crescimento substancial do país, o aumento do investimento superou largamente o aumento do consumo – esta é a razão porque, apesar do aumento nos salários reais desde a posse de Lula na Presidência (sobretudo do salário mínimo, que teve uma valorização de 53%), a capacidade ociosa da indústria ficou sempre acima de 17%, mesmo no ano em que houve maior aumento de consumo (2010), não por acaso o ano em que houve, também,  maior aumento do investimento.
O crescimento real do conjunto dos salários foram menores que o do salário mínimo – o que corresponde à justa política de valorização do salário mínimo, estabelecida pelo presidente Lula.
Vejamos a segunda tabela desta página:
ANO
INVESTIMENTO
(FBCF – var. %)
RENDIMENTO MÉDIO REAL
(BR - var. %)*
SALÁRIO REAL MÉDIO (INDÚSTRIA SP)
MASSA SALARIAL REAL (var. %)
2003
-4,6
-4,6
-3,5
-4,2
2004
9,1
0,1
4,0
9,0
2005
3,6
0,7
-0,2
8,1
2006
9,8
4,9
7,7
7,8
2007
13,9
1,4
-0,4
6,3
2008
13,6
6,0
0,6
6,9
2009
-6,7
-2,1
2,9
3,9
2010
21,3
2,5
0,7
7,4
2011
4,7
2,5
-1,2
4,8
Fonte: IBGE (PME) e Fiesp (Levantamento de conjuntura, salário real médio na indústria/SP, var. % a.a).
* Trabalhadores com carteira assinada.

O aumento real de salário dos trabalhadores não se aproxima do aumento do investimento, exceto nos anos em que houve sensível redução do crescimento do país.
O aumento da massa salarial foi impulsionado, sobretudo, pelo aumento do emprego, não principalmente pelo aumento dos salários reais. O que não é pouca coisa, considerando o país devastado – e desempregado - que Lula teve que administrar, ao assumir a Presidência.
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A conclusão é que o suposto “descompasso” entre “as taxas de crescimento da oferta” (o aumento da capacidade produtiva e da produtividade, determinados pelo aumento do investimento) e “as taxas de crescimento da demanda” (o aumento do consumo ou da procura por bens de consumo, determinados pelo aumento da renda real) nunca existiu.
Era, única e exclusivamente, uma fraude para aumentar os juros.
E se tivesse existido?
Também a solução não poderia ser a de derrubar o crescimento – problemas do crescimento se resolvem com o crescimento.
Mas o fato é que não existiu.
Continua na próxima edição.

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